As homenagens póstumas a Noam Chomsky nesta semana foram mais do que merecidas, apesar do grave erro jornalístico que anunciou uma morte que não acontecera. Nada de novo na era das fake news, difundidas inclusive pela grande imprensa mundo afora. De certo modo, foi até bom homenagear em vida uma figura como Chomsky, que dedicou a sua vida ao enfrentamento do imperialismo estadunidense, usando seus privilégios da melhor forma possível: lutando o bom combate. É justo que ele tenha a chance de ler os belos obituários que lhe foram escritos por conta deste episódio insólito. E que desfrute de seu tempo na terra com o amor e o reconhecimento que merece.

Amor e reconhecimento que devem ser estendidos a outros ícones que entregaram suas vidas à luta contra a máquina de guerra imperial dos Estados Unidos da América (EUA). Em todo o mundo existem heróis e heroínas desta estirpe, mas alguns – como Chomsky – são cidadãos americanos e lutam a partir do interior do próprio império. Uma dessas pessoas é Chelsea Manning, que precisa ser celebrada. Mais ainda do que o nosso querido professor de linguística do MIT, ela esteve no âmago do que há de pior no capitalismo militarizado contemporâneo: as Forças Armadas dos EUA. Manning deu sua contribuição estando justamente na posição de analista de inteligência do Exército durante a Guerra do Iraque: from the belly of the beast (“na barriga da besta”), como diz o ditado de seu país.

Em 2010, ela decidiu romper com tudo aquilo que constituía a sua carreira e visão de mundo até então. Ao se deparar com filmes secretos de seu Exército cometendo crimes de guerra, tomou a decisão de romper os regulamentos e os juramentos de lealdade a seu governo: entregou os vídeos secretos para o portal Wikileaks, de Julian Assange, que trouxe a denúncia – com provas – a público. A autenticidade dos vídeos foi comprovada na hora e a divulgação dos crimes causou considerável dano político em Washington, ajudando a solapar a chamada Guerra ao Terror, iniciada uma década antes.

Um dos vídeos liberados mostrava jornalistas da Reuters assassinados pelos soldados norte-americanos, além de crianças iraquianas, em meio a risadas dos militares, que atiravam dos helicópteros como se jogassem videogame. É por conta deste vídeo que Julian Assange foi perseguido e segue preso até hoje (sem condenação). Foi também por conta destes documentos secretos (ao todo, mais de 700 mil arquivos) que Chelsea Manning foi presa e torturada pelo próprio Exército que um dia serviu. Ficou meses em uma cela solitária, onde era obrigada à nudez e à privação forçada de sono, além de várias outras formas de tortura psicológica. Sua vida foi devassada e as ameaças foram infinitas.

Mas ela estava decidida a transformar a realidade. Aliás, foi no meio desta batalha que ela transformou a si própria também, ao se descobrir mulher, pois até então esta pessoa chamava-se Bradley Manning e identificava-se como um homem cis. No entanto, no dia em que foi condenada, em 2013, ela anunciou ao público que quem iria para prisão não seria mais Bradley, mas uma mulher, Chelsea Manning, como doravante deveria ser chamada. Muitos acusaram-na de fingir esta transição de gênero como se fosse uma artimanha de seus advogados para diminuir a pena sob alegação de transtornos psicológicos.

Mas se equivocaram. Chelsea já nasceu com um padrão de dignidade anos-luz à frente de seus críticos. Apesar das torturas e humilhações sofridas, ela nunca delatou a Julian Assange – e nem a ninguém. Um ex-colega de Chelsea, de um coletivo de hackers, ao contrário, foi quem a delatou e causou sua prisão no Iraque. Este cidadão depois foi trabalhar como hacker para o próprio governo estadunidense, em um projeto de ciberguerra em conjunto com empresas privadas… Apesar de ter sido ela a julgada por alta-traição, ele foi o verdadeiro traidor (da humanidade). A antítese do que Chelsea escolheu ser. Na era das fake news, foi punida quem divulgou a verdade.

Numa época em que até jornalistas e intelectuais se curvam espontaneamente frente ao poder, seja em busca de holofote ou benesse material, o exemplo de Chelsea Manning precisa ser replicado. Ela encarna a verdadeira resistência de que tanto se fala desde que parou-se de falar em revolução. Mesmo tendo sido militar, enfrentou a caserna-mor do planeta de modo mais enfático do que muitos sequer cogitam fazer frente a exércitos muito mais débeis. Quando Obama comutou a sua pena, em 2017, não fez mais do que um gesto atrasado de justiça. Bem ao seu estilo, terminou a Guerra ao Terror, mas iniciou tantas outras, incluindo a da Ucrânia, que hoje nos assombra.

Chelsea poderia ter sucumbido durante o processo. Mas, assim como Chomsky, está viva e continua a ser um ícone-vivo da luta contra o militarismo capitalista yankee. Apesar da permanência do imperialismo estadunidense, ela também resiste e existe. Uma existência que atrapalha as engrenagens do poder e incomoda os cães de guerra. É viva que devemos homenageá-la, então, cotidianamente agradecendo por sua bravura e encontrando nela esperança no ser humano e sua capacidade de mudar para melhor.